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CORPO, SEXUALIDADE E SAÚDE MENTAL: DIÁLOGOS POSSÍVEIS




Resumo: Em instituições psiquiátricas as ‘regras de casa’ são pautadas na modelagem de instituições totais. Linguagens, corpos e gêneros são parte dos registros. A pesquisa é resultante da dissertação de Mestrado no Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea, integrada à demonstração sobre a loucura e a sexualidade, inscritas no silenciamento estratégico de praticas no cuidado à saúde mental. As manifestações sexuais sugerem e representadas por expressões como ‘louca’, ‘doente’, ‘ter uma coisa no corpo ou na cabeça”. Sabe-se que a internação cronifica o estado das pacientes, tenham ou não o diagnóstico de patologia mental. Cada profissional de saúde seja pelo preconceito ou pela incapacidade de lidar as manifestações de sexualidade utiliza um modo particular de percepção da sexualidade e uso de sinônimos muitas vezes pejorativos que acaba por desvelar seu juízo de valor e que de forma tende a uma ‘naturalização banal’ da cena de manifestação sexual. A mulher-louca manifesta e expressa seus sentimentos de modo próprio e intransferível. A repressão da sexualidade pode alterar seu equilíbrio interno, inclusive levando-a à crises dependendo da circunstâncias da repressão. Através de abordagem qualitativa, com base nos prontuários de mulheres internas em uma instituição soteropolitana, ingressas entre 1986 e 2013, com diagnóstico psiquiátrico já inscrito no momento da triagem e não alterado na sua longa permanência na internação. Dentre os resultados desvela-se evidente que a mulher-louca carrega consigo diferenciação de gênero, estereótipos que trazem em si representações e significados ao que a sociedade ‘normal’ conceitual como boa ‘personalidade feminina’.

Palavras-chave: Gênero; Loucura; Sexualidade, Instituições.

Introdução

Os indicadores revolucionários construídos para tratar a loucura de modo mais humanista no século XX e no século XXI, no âmbito da Reforma Psiquiátrica[1] parecem sofrer reveses, como se confere neste hospital (instituição de reclusão sedeada em Salvador, Bahia, fundado em 24 de junho de 1874 no qual ainda ocorrem histórias semelhantes às que Michel Foucault nos relata em suas obras. A subjetividade seduzida pela saúde mental e sua extensão no que diz respeito à família e à sexualidade, abriram os primeiros questionamentos que fundamentam essa pesquisa.

Compreender os problemas do sofrimento psíquico (e relações de dominação) para além da perspectiva individual e psicologizante, centrada predominantemente no sujeito como mero portador de transtorno mental foi o objetivo central, traçando como delimitação o estudo de gênero (mulheres loucas) institucionalizado no período de 1986 a 2003.

Como objetivo específico, encontramos a ideia de compreender a interface família x saúde mental x sexualidade que implica no enfrentamento de manifestações sexuais sem o escudo da moralidade que o sujeito normal[2] vivencia. E objetivo auxiliar demonstrar que o conhecimento sobre a família, a loucura e a sexualidade inscrevem em um silenciamento estratégico de praticas no cuidado à saúde mental. Posto que a louco não estabelece critérios de controle sobre o seu desejo.

A pesquisa justifica-se do ponto de vista da historiografia da família, da loucura, da sexualidade, da psicologia e da psiquiatria, trilhando interfaces e enveredando por uma abordagem sobre complexidade e interdisciplinaridade do tema-objeto. O ponto de partida ocorre em relação à sexualidade do padecente de transtorno mental ocorre um esvaziamento do desejo desse sujeito. “Mas como pode louca ter desejo?”. Parece que o tratamento oferecido à louca é privilegiadamente o de repressão, dado que, os profissionais que integram as equipes de atendimento à saúde mental não se dispõe a conhecer o universo desiderativo dessa população especifica.

A Lei 10.216/01 nomeada de Paulo Delgado já trouxe premissas de terapêutica para os portadores de transtornos mentais promovendo interfaces entre as áreas do Direito, Serviço Social, Psicologia, Antropologia, Sociologia e a própria Reforma Psiquiátrica. Mas no que tange a terapêutica nos espaços manicomiais, está muito distante o que seria o acolhimento do desejo.

Dadas as dificuldades de manejo na intervenção e assistência à saúde mental de sujeitos que apresentam desejo sexual nas unidades de serviços públicos de saúde, se confere a prática de contenção e medicalização para “aquietar” o corpo do paciente e, como colorário, acudir à angústia do profissional que assiste a cena incômoda (MURARO, 2003; MURARO & PUPPIN, 2003). Uma paciente com diagnóstico psiquiátrico e com a sina do estigma de “louca” incomoda quando goza. Por que? Há uma dominação de mente e corpo por um longo e perverso processo histórico. (FOUCAULT, 2008).

Não há a pretensão de esgotar a discussão, mas aponto para uma necessidade de revisão de manejo dessa realidade, bem como o desenvolvimento de medidas que ultrapassem aos ditames do Código Internacional de Doenças (CID) quando do acolhimento das manifestações de conduta dos transtornados psíquicos.

Metodologia

O per(curso) metodológico do pesquisa iniciou-se pela compreensão do que seja a tarefa de sua de imersão na temática eleita. O trajeto investigativo se torna o eixo que engrena a interface pesquisadoras-pesquisa-objeto-de-pesquisa e que tece o fio condutor e os estímulos concretos provenientes de um satisfatório referencial teórico.

Booth et al (2009) fornecem a provocação que me mobiliza nesta dissertação no uso das ferramentas teórico-metodológicas para arcar o desafio da interdisciplinaridade, na arrolagem de enunciados das ciências que circunscrevem a temática da pesquisa: Antropologia, Filosofia, Psicologia e Psiquiatria). A provocação diz respeito à construção de pontes enunciativas a partir de discursos específicos, no esforço de arquitetar uma episteme convergente aos meus objetivos, enfrentando a vigilância epistemológica o risco da esquizofrenia enunciativa e blindando o trabalho da tirania dos autores. O diálogo com eles, tomando Michel Foucault como a ponta de lança. Mas um estado da arte mais up to date tornou-se imprescindível para a vigilância epistemológica de escavação de significantes convergentes ao escopo desta pesquisa.

Ressalta-se que a investigação qualitativa em saúde foi eleita graças às adequação e pertinência no procedimento metodológico sobre o tema. Posto a complexidade que permeia o cenário da saúde mental cobra olhares cruzados, cooperativos, que favoreçam ao cotejamento de certas proposições que diagnosticam a situação em que se inscreve a família possuidora de um dos seus membros na condição de padecente de transtorno mental.

Quanto à natureza dos objetivos da pesquisa, trata-se de um estudo que requer esforços reflexivos de caráter explicativo. O modelo aqui adotado é o de investigação teórica, convencionado como revisão de literatura. Com ele, isola-se uma teoria e se estabelece os núcleos argumentativos que lhe conferem sustentação. A partir dos conceitos e dos argumentos extraídos em análise da fonte primária, foram realizados cruzamentos de argumentos de fontes secundárias, envolvendo identificação, isolamento, compilação, ordenamento de idéias convergentes ao propósito da investigação.

A revisão bibliográfica foi realizada com base em consultas às principais bases de dados eletrônicas nacionais e internacionais e no banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), o Diretório de Grupos de Pesquisa credenciados no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para a triagem de pesquisadores que no Brasil investigam oficial e certificadamente este tema.

Foram compiladas as teses e dissertações do Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea (PPGFSC), Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontificia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina interdisciplinar em Ciências Humanas (PPICH-SC) e do Programa de Pós-graduação em Enfermagem de Ribeirão Preto-USP. As bases de dados consultadas foram:

a) MEDLINE – Medicine on line, uma das mais conceituadas bases de dadosinternacionais, especializada em artigos médicos;

b) LILACS – Bases de dados da Literatura e de Periódicos Latino-Americanos e do Caribe, base de dados especializada em ciências da saúde;

c) BVS-MS – Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde.

d) PsycINFO - Referência internacional dos estudos psicológicos, pertencente a Associação Norte-Americana de Psicologia (APA);

e) SCIELO – Scientific Eletronic Library Online, base de dados especializada em publicações de trabalhos científicos brasileiros.

Resultados e Discussão

A experiência de DOR(dominação) dos corpos e desejos em cárcere pode propiciar mecanismos individuais de defender-se pela psique frente à angústia e à dor, seja ela de qualquer natureza. Mas qual defesa é possível quando o corpo está sob uma dominação química e/ou mecânica? Como uma mulher louca pode ‘gritar’ por sua autonomia em um espaço manicomializado ? onde seu corpo e subjetividade são dominados-controlados-vigiados?

Ora, como sujeitos sociais com expressão da linguagem hoje no século XXI convivem entre a liberdade da sociedade até chegar à clausura de um internamento de um familiar? Quais motivos justificam contrastes incríveis para não dizer predatórios que se estabelecem com a passagem da natureza para a cultura. Há um fracasso da ‘cultura contemporânea’ no manejo em sociedade com a mulher, com a loucura e com o corpo feminino vigiado-fetichizado? Se a louca tem uma patologia mental, a sua família e, por consequência, a sociedade vive uma patologia da razão.

A própria constituição histórica da Psicologia que se instituiu em nossa sociedade era uma ciência conservadora que “ajuda a acobertar as condições sociais que constituem o homem” e propunha uma Psicologia que tivesse uma visão pragmática, objetiva do indivíduo, visando à sua adaptação na sociedade.

Como a louca pode sentir/expressar a energia, a libido, ou desejo que são operacionalizados por uma lógica que não é a do ser ‘civilizado’, pois para o desejo não há pragmatização do tempo e, muito menos da razão. Logo do desejo das loucas em uma instituição psiquiátrica é perturbadora (da ordem social), capturado, domesticado, desviado, inclusive, pela voracidade com o qual é expressa a potência do feminino. A internação serve como a criação de um campo delimitado de manobras subjetivas, sobretudo, sociais para que o do desejo seja, apenas, parcial, logo incinerando quimicamente a libido e mecanicamente o desejo, cuja natureza é libertária e nômade.

A trifonia eloqüente das matrizes contemporâneas para compreender a sexualidade no contexto de clausura. Percorrendo a história recente, apreende-se que a loucura esteve ligada às várias acepções (marginalidade, descriminação, desrazão já descritos em capítulos anteriores), contudo, no que tange a referência de loucura feminina a maior parte da literatura construída pauta-se a insanidade da mulher versus a sexualidade.

Mesmo resgatando os registros na época do Egito Antigo, quando se acreditava que o corpo da feminino, por possuir útero, uma condição fisioanatomica da mulher teria pré-disposições malignas o que se manifestava em comportamentos inadequados nomeados de histeria[3] o que segundo Vilela (1992), já seria uma espécie de rascunho ou esboço de loucura.

Em uma passagem no mesmo sentido encontramos a compreensão da loucura na Idade Antiga associada a um estado melancólico[4] com alucinações que seriam originárias do período menstrual como aponta a historiadora Del Priore (1994; 1999), pelos estudos do médico Galeno[5], na qual a melancolia era associada aos excretos do sangue menstrual, causador de alucinações. Propagava-se nessa época que o sangramento mensal das mulheres tornavam-nas doidas, indecentes, furiosas, sem apetite, sem sono e não lhes despertavam interesses pelas atividades do cotidiano, rotulando-as como melancólica, sendo propensão a torna-se, também, histérica e ninfomaníaca. Segundo Tosi (1985), o ciclo da fisiologia feminina desenhava a tênue conjugação da mulher à natureza.

Adiante, na Idade Média, as mulheres foram coisificadas como bruxas pela Inquisição (TOSI, 1985; PESSOTTI, 1994). Elas, as feiticeiras, pobres e migrantes da zona rural, tinham “visões e alucinações” (sem explicação) e logo eram associadas a manifestações corpórea do demônio e, a elas a fogueira a sina. Do mesmo modo Del Priore (2004) em ‘Magia e Medicina na colônia: o corpo feminino’ sobre a mulher no Brasil Colônia constrói uma compreensão entre a representação do corpo feminino que esta intrinsecamente destinado ao ‘entre’ o céu de o inferno. Tudo depende do que ela faz do seu corpo a dualidade ‘o sagrado e o profano’, embora o mesmo não seja propriedade sua. “O corpo feminino parecia, assim, o lugar de uma dupla propriedade: ele parecia ameaçador, quase demoníaco, mas ameaçava-se a si próprio ao se tornar vulnerável a elementos do universo exterior”. (p. 103).

Esses comportamentos sem explicação, durante a Idade Média, seriam equivalentes hoje às patologias sociais contemporâneas e emergentes em Psicologia como a própria histeria, melancolia, depressão e ansiedade (que ainda hoje são patologias que acometem mais as mulheres do que aos homens). O senso comum das habilidades misteriosas das bruxas/feiticeiras tinha de certa forma “[...] as propriedades das ervas ou plantas com que preparavam poções e unguentos reputados eficazes no tratamento de doenças tanto físicas quanto mentais” (TOSI, 1985, p. 42).

Analisando a História em nome de um poder exercido sobre a mulher fomos vítimas de símbolos significantes para colocá-las em posição de inferioridade em relação ao gênero, seja o cárcere, a mutilação, a reclusão em domicílio, as burcas, os véus, as máscaras, as maquiagens, as roupas e os demais acessórios que a mantivesse em posição de objeto a ser manipulado e que lhe negasse sua condição de indivíduo social.

Sob as mulheres pesa quaisquer tipos de transgressão à moralidade social da época e bons costumes civilizatórios: o casamento, a reprodução e o cuidado do lar. Sendo a elas negadas a prática da prostituição, adultério e aborto (PESSOTTI, 1994). Toda mulher que não constituía matrimônio e prole era marginalizada. Por isso, a o período de caça às bruxas (VILELA, 1992), consolida binômio a mulher e a loucura, lhe ‘concede’ o livre exercício da sexualidade, esse comportamento gera uma fatura alta a ser paga com o extermínio das mulheres que praticavam a medicina empírica, e, disseminação do "[...] terror na população feminina, o que facilitaria sua normatização social" (TOSI, 1985, p. 42).

Na Idade Moderna, a história acende na Europa a relação, mais uma vez, esquematizada entre o útero[6] e a sanidade mental da mulher. Associado a ideia de inferioridade perante o homem, no aspecto físico, intelectual, moral e mental, com aporte aos artifícios fisiológicos ou, nos termos de Del Priore (1997; 1999), jaziam aprisionadas desta fisiologia, da constituição de seus órgãos genitais. Também nesta época “[....] acreditava-se que o útero, oco de semente, tornava-se encantador e sedutor, capaz de criar com seus poderosos excretos todo tipo de feitiço”. (DEL PRIORE, 2004, p. 100). Reforçando a ideia de que o corpo da mulher deveria ser disciplinado as regras da sociedade pela sua boa conduta de moralidade consoante com Goffman (1961) e Foucault (2008).

Finalizando o século XVII e o princípio do XVIII, decai a crença e o extermínio das bruxas e, o inquisidor que sentenciava a fogueira agora é pode ser comparado à insurgência da figura do médico na identificação da loucura mais tarde doença mental. Onde a pratica da internação asilar base da psiquiatria nascente, irá investigar, diagnosticar e ‘tratar’ a loucura (FOUCAULT, 2008). Não desprezando a tênue associação da psiquiátrica da loucura, ao modo capitalista de produção, sujeitos incapazes de atividades laborais, desviantes sociais, como mendigos, pobres de toda ordem e desempregados a sentença era a internação.

O ‘critério’ para o internamento das mulheres, eram diversos (e insuficientes para justificar): as prostitutas, as nervosas[7], as histéricas, as pobres, filhas de artesãos que pudessem ser seduzidas, moças de família que fossem desvirginadas, a estéreis e até mesmo as mulheres que não se casavam (PESSOTTI, 1994; PEREIRA, 1997; MURARO 2009; FOUCAULT, 2008; ARBEX, 2013).

Questiona-se, então, como negar a sexualidade, ou melhor: o desejo?Recorrendo a Onfray (2010, p. 64) [...] onde Dionísio parece, a miséria sexual se instala. Tanto que, à força de determinismos sociais, de propagandas ideológicas moralizadoras generalizadas, a servidão se torna voluntária e, definição alienação, a vítima acaba até encontrando prazer na renúncia de si. Assim, é possível considerar a origem da negação do desejo, uma vez que ele confere a dimensão primitiva e ‘natural’ do desenvolvimento humano, inclusive a sexualidade, um sustentáculo quase inevitável no aspecto biológico, mas com escavas para criar realidades propiciadas pelo encontro com a cultura.

Há algo quase para ‘explicar’ a negação do desejo, meditando didaticamente entre a natureza e a cultura (CUNHA, 1998), pela natureza experimenta-se a sexualidade instintiva e na cultura ganha-se o erotismo e os artifícios do prazer pelas convenções sociais do matrimonio e reprodução.

O mesmo infere “ficções socialmente úteis e necessárias”, tais como: a ideia de que o desejo é carência que só pode ser sanada com um par culminando no gozo e; a ideia de que a família resolve o problema da libido que segundo o autor tem natureza nômade. E, mais “quando a filosofia falta, a biologia reina” (2010, p. 61).

Em essência ele critica muitas contradições embutidas nas ditas “ficções socialmente úteis e necessárias” que necessitam ser desconstruídas, mas que ao mesmo tempo alimentamos um ranço juízo moralizador que dissimula e abafa o feminino, a louca.

Posto que pela pesquisa sobre sexualidade na era medieval Karras (2005, p. 03): “Tanto na relação homem-mulher como na relação homem-homem o sujeito ativo era aquele que penetrava enquanto que o passivo era o que era penetrado”. Afinidades versus a natureza significavam inverter ‘qualquer normal’ entre os sexos, tais como: as elações homossexuais eram violação contra a natureza porque um dos homens assumia, necessariamente, o papel passivo, era penetrado por outro homem; e em uma relação heterossexual caso a mulher ‘assumisse uma posição inadequada’ ao seu comportamento de submissa também seria contra a natureza.

O corpo, transformado na reclusão e da expressão da feminilidade materializadas nos corpos das loucas se esbarra na perda de signos do feminino e, sobretudo, da dignidade que pelas ações de estigmatização, violências e exclusão, ceifa o direito fundamental à singularidade, ou seja, subjetividades em cárcere. Ao passo que dar manutenção às demandas regulatórias da bio-política e disciplinares do bio-poder (FOUCAULT, 2006).

De acordo com Foucault, só o fato das mulheres receberem o estigma de louca por ser mulher quando a história nos desvela a forma como as bruxas (mulheres), as fêmeas ameaçadoras foram atiradas as fogueiras pelos moralistas da época[8]. Hoje, um conjunto de regras ditadas pelo discurso científico concebe permissões nos comportamentos sexuais, mas a louca quaisquer expressão de desejo ou libido são intoleradas e, mais a existência da louca por si só já é uma afronta à sociedade normativa. Considerando a passagem da natureza para a cultura, aqui não há nenhuma mudança operacional, apenas, conceitual. Da fogueira ao cárcere. “De santa a bruxa, de parteira a curandeira, de mãe a prostituta, a mulher vai sendo construída e desconstruída ao longo da História, através das conveniências sociais, econômicas, políticas e religiosas”. (KRAMER & SPRENGER, 2009, p. 14-5).

O hospício da louca já implica relações de poder em seu cerne, de acordo com Foucault, toda relação social (mesmo a asilar) é, ainda mais forte, uma relação de poder. O exercício do poder constroem saberes sobre seus objetos, exercício e efeitos, resultando num regime de poder que pode ser estendido a outras instituições e ao conjunto social (FOUCAULT, 1985; 2006; 2008), por meio de dominação, institucionalização ou sujeição.

O asilo é precisamente o que faz pagar a loucura com um certo número de necessidades artificialmente criadas e é, ao mesmo tempo, o que vai fazer pagar a cura por meio de uma certa disciplina [...] o asilo, ao estabelecer uma carência, permite criar uma moeda com que se pagará a cura [...] os meios de pagamento da terapêutica: é isso no fundo, o que constitui o asilo. (2006, p. 195)

As praticas de isolamento social das mulheres e loucas dar-se-á pela análise das técnicas e tirocínios sociais que se constitui uma analítica do poder, isto é, uma apreciação aos díspares regimes de poder, e uma tênue possibilidade de reversão histórica das formas de dominação. (MIRANDA, 1996; 2002).

A medicalização da beleza, mitologia e estética, ilustra-se na passagem; “Eu fui muito judiada [...] acho que isso me deixou eu nervosa e precisei ser internada, fiquei doente mental [...] a gente ficou traumatizada, fiquei traumatizada muito”.[Luíza[9], interna do hospital psiquiátrico de Ribeirão Preto, vítima de estupro e relação incestuosa com o pai]

Na mesma semelhança a passagem de A hora da estrela de Clarice Lispector (1998),

depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. Mas se arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase impessoal.

Glória perguntou-lhe:

– Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.

– É para eu não me doer.

– Como é que é? Heim? Você se dói?

– Eu me doo o tempo todo.

– Aonde?

– Dentro, não sei explicar.

Por esta perspectiva, registramos relatos e situações de pacientes que ilustram situações de aprisionamento de corpo, desejo e subjetividade sob diversas faces de abandono de estética e de dignidade. E, em seus cotidianos: uma situação é a chegada à ala de internação feminina mulheres de cor branca ou de cor negra, mulheres de estatura alta e mulheres estatura baixa, algumas muito magras e outras muito acima do peso, uma parte considerável com outras doenças (além da mental) e muitas sem dentição, um grupo com cabelos longo com piolhos e algumas com corte de cabelo masculino para não suscitar sexualidade, muitas sem unhas ou com unhas quebradas e feridas.

Consideramos que a paciente padecente de transtorno mental é

portadora de intensa dor e sofrimento que nem sempre pode ser expressado porque dói tudo, até existir dói.

E, o corpo disciplinar ganha um número de prontuário, um uniforme, passa pela bandeja de medicação e fica ao aguardo de algum profissional da internação seja terapeuta ocupacional, psicólogo, enfermeira-chefe ou técnica de enfermagem: que quando tiver tempo vem lhe dar ‘as boas vindas’ e orientar – ordenar - a rotina, (isso com as pacientes de bom comportamento, pois as pacientes em crise ou ficam de debatendo nos corredores ou são contidas).

A expressão de um corpo feminino é também uma fonte de admiração do belo como exprime Vênus[10] na mitologia grega. Um corpo que antes era dotado de atributos de beleza, glamour e sedução passa a ganhar contorno de um corpo que não reproduz nenhuma estética e uma higiene precária ao passo que fragiliza sua auto-estima. Incapacitando-a para qualquer possibilidade de enfrentamento dos processos de estigmatização, ou de suportar as dores do confinamento, o frio e o calor dos leitos e angústias da organopatologia (quando existe), restando-lhes se submeter aos olhares e comportamentos que as excluem de serem: mulheres.

Em obrigadas a entregar seus pertences, mesmo que dispusessem do mínimo, inclusive roupas e sapatos, um constrangimento que levava às lágrimas muitas mulheres que jamais haviam enfrentado a humilhação de ficar nuas em público [...] as mulheres andavam em silêncio [...] daquele momento em diante, elas deixavam de ser filhas, mães, esposas, irmãs [...] nesta condição, viam-se despidas do passado, às vezes, até mesmo da própria identidade. Sem documentos, muitas pacientes do colônia eram rebatizadas pelos funcionários. Perdiam o nome de nascimento, sua história original e sua referência, como se estivessem aparecido no mundo sem que alguém as parisse. (ARBEX, 2013, p. 28-29-30 grifos nossos)

O lugar da mulher? Em casa ou no manicômio? Signorelli (1996), ressalta que por anos o espaço doméstico foi atribuído a mulher, sendo o seu espaço de ‘re-produção’ a casa e a família são seus vínculos, tais vínculos por muitos séculos e até hoje levam-nas ao hospício. A própria sexualidade da mulher[11] tem estrita ligação com a reprodução e, não necessariamente com a maternidade (consequência do vínculo), mas a reprodução é imposta tênue ao matrimônio. No tocante à saúde mental, registramos evidencias de sofrimentos psíquicos que associam-se a perda de sua identidade que além de ser portadoras de uma doença mental, passam a desencadear outros sintomas psicológicos mais freqüentes como as crises de ansiedades, angústias e quadros graves de depressão, aumentando os níveis de vulnerabilidades que as expõem aos riscos de estigmatização e violência subjetiva no espaço asilar.

Conclusões

A libido ‘exagerada’ no momento da crise é a única referência da sexualidade que eles têm da interna em saúde mental pela visível negação de outras formas de ato sexual além do sexual heterossexual. Em geral a equipe negar haver manifestações que não sejam heterossexuais, mas em uma fala apareceu registro de que quando as mulheres não saem da ala feminina elas acabam por acariciarem estendendo para o ato sexual, ou seja, a equipe sabe que existe, porém nega outras possíveis expressões da sexualidade.

A reprodução da equipe sobre o erotismo da paciente lhes parece uma crise, surto ou delírio, pois concebem a louca como incapaz de desejar. Em muitas expressões a masturbação é associada a crise, como se condição de se masturbar fosse relativo a condição de estar doente. Os profissionais também deixam nas entrelinhas que a prática sexual ‘aceita’ na instituição é a heterossexual. Estes relatos tiveram o propósito de compreender as percepções de profissionais, em sua maioria enfermagem, que assistem pacientes psiquiátricos acerca da sexualidade. Pelos relatos infere-se que a manifestação da sexualidade do doente mental é vista de forma exacerbada, portanto, descontrolada, como o próprio doente. Como propõem Bardin (2009), o discurso dos participantes não é um produto acabado, mas uma fase de elaboração que pode ser pautado no exagero, na falta de medida, e nas entrelinhas, ou seja, expressão da subjetividade, também de quem enuncia.

De acordo com Amarante (2003) o profissional – de enfermagem- evolui prontuário e repassa informações aos demais colaboradores da equipe de saúde e familiares e ao negar a existência da sexualidade no paciente torna-se ‘mais neutro’ ao fazer seu posicionamento. A tendência à homogeneidade, mesmo sabendo que a manifestação de sexualidade nos espaços institucionais são potencializadas pelo confinamento como já foi abordado anteriormente.

Master e Johnson (1981; 1985) apontam a importância de reconhecer que nem todas as pessoas deficientes são semelhantes em suas capacidades de aprendizado e independência, estabilidade emocional e habilidade social. A cultura é uma dimensão do processo histórico-social da vida de uma sociedade, um ‘tecer’ de fatos sucessivos que Santos (1983) chama atenção tanto na preocupação em se estudar sociedades diferentes, quanto na discussão sobre a cultura, os impulsos se localizam na civilização dominante. São os nossos olhares, sociedade, que a ciência vê o mundo, inferindo, alterando, escavando, compreendendo, desafiando.

Referências Bibliográficas

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[1] A Reforma do Modelo de Assistência em Saúde Mental no Brasil, prevista pela Lei federal 10.216 surgiu de um movimento político tendo como escopo a mudança no sistema de tratamento clínico da doença mental, eliminando gradualmente a internação como forma de exclusão social. Este modelo seria substituído por uma rede de serviços territoriais de atenção psicossocial, visando a integração da pessoa que sofre de transtornos mentais à comunidade. (AMARANTE, 1995). Contudo, a ênfase desta pesquisa não propõe a discussão sobre os movimentos que sustentam a reforma psiquiátrica. Importante mobilização a partir da III Conferência Nacional de Saúde/CNSM, 2001.

[2] Para abordagem normalidade e anormalidade conferir em Foucault (2006).

[3] Doença psíquica investigada por Charcot e Freud entre os séculos XVIII e XIX, mas que fora da concepção psicanalista, uma espécie de falsa doença por ter nenhum respaldo fisiológico-anatômico.

[4] Melancolia é um termo que vem desde a Antiguidade clássica: Hipócrates procurou explicar os distúrbios mentais como resultado de um desequilíbrio entre os quatro humores básicos do corpo: o sangue, a linfa, a bile amarela e a bile negra, a que correspondiam os quatro temperamentos: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico.

[5] Galeno de Pérgamon (c. 129 d.C.-c. 200 d.C.). comungava que o cérebro seria o centro das emoções. A melancolia resultava, para Galeno, de uma inundação do cérebro pela bile negra, cujo excesso, por sua vez, era consequência de um espessamento do sangue, a ser tratado pela sangria.[6] Del Priore (2004) discorre que adotávamos a Medicina e descobertas de Portugal nosso colonizador onde emergia a ideia de que os ovários das mulheres eram testículos que não se desenvolveram, acentuando ainda mais a inferioridade do corpo feminino.

[7] De acordo com a publicação de Freital 1949 (ODA; DELGALLARONDO, 2000), o temperamento nervoso da mulher (ou as alterações dos estados de alegria, tristeza, vivacidade e melancolia), e a internação era o tratamento de prevenção alterações no sistema nervoso, com recomendações de alimentação baseada em vegetais, passeio no campo, banhos, laxantes e sanguessugas.

[8] Na alta Idade Média, havia todo um artefato de vigília e controle sobre o sexo das mulheres, pois são corpos e almas mais vulneráveis ao pecado da carne, entrada privilegiada do demônio na intimidade humana. Introdução histórica da 20ª edição (2009) “O Martelo das Feiticeiras”.

[9] Casos descritos na íntegra ver Tese de Doutorado (PEREIRA, 1997).

[10] Vênus foi uma das divindades mais veneradas entre os antigos, sobretudo na cidade de Pafos, onde o templo era admirável. Tinha um olhar vago, e cultuava-se o zanago dos olhos como ideal da beleza feminina. Possuía um carro puxado por cisnes. Vênus possui muitas formas de representação artística, desde a clássica (greco-romana) até às modernas, passando pela renascentista. É de uma anatomia divinal, daí ser considerada pelos antigos gregos e romanos como a deusa do erotismo, da beleza e do amor.

[11] Sugerimos a leitura de Ronaldo Vainfas (org), História e sexualidade no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1986, que contém vários artigos pertinentes ao tema. Tema discutido também sobre ‘A letra de Escarlete’ na tese de Cabreira (2006).


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